quarta-feira, 11 de abril de 2012

Palavra Antiga no Canta Recife 2012

domingo, 8 de abril de 2012

Entrevista Exclusiva com a Banda Palavrantiga

SÉRIE “ANTES DE TUDO PREGA O EVANGELHO” 3

SÉRIE  “ANTES DE TUDO PREGA O EVANGELHO” 3





3. O Evangelho de Deus (vs. 9,10)

. . . que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, 10e manifestada agora pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Je­sus, o qual não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho...
É notável ver Paulo passar, de repente, da referência ao "evange­lho" à afirmação central: "Deus . . . nos salvou". É mesmo impos­sível falar do evangelho sem falar, ao mesmo tempo, da salvação. O evangelho é precisamente isto: boas novas de salvação, ou boas notícias de "nosso Salvador Cristo Jesus" (v.10).   Desde o dia do Natal, quando a boa nova de alegria foi anunciada pela primeira vez, proclamando o nascimento do "Salvador que é Cristo o Se­nhor" (Lc 2: 10-11), os seguidores de Jesus têm reconhecido o seu conteúdo essencial. Paulo mesmo nunca vacilou a esse respeito. Em Antioquia da Pisídia, na primeira viagem missionária, ele re­fere-se ao seu evangelho como a "mensagem desta salvação". Em Filipos, na segunda jornada missionária, ele e seus companheiros foram identificados como "servos do Deus Altíssimo, que nos anunciam o caminho da salvação". E ao escrever em Roma aos Efésios, ele intitula a palavra da verdade de "o evangelho da vos­sa salvação" (At 13:26; 16:17; Ef 1:13).
Assim, aqui, ao escrever a respeito do evangelho, Paulo usa a terminologia costumeira, isto é, que somos salvos em Cristo Je­sus por determinação, graça e chamado de Deus, não por nossas próprias obras. É que ele está expondo, nesta sua última carta, o mesmo evangelho que já expusera na sua primeira carta (Gaia­tas). Com o passar dos anos, o seu evangelho não sofreu mudan­ças; há somente um evangelho de salvação. E conquanto deva­mos traduzir os termos "evangelho" e "salvação" por expressões mais compreensíveis ao homem moderno, não podemos alterar a substância da nossa mensagem. Examinando com mais cuida­do a forma concisa com que Paulo apresenta o evangelho de Deus nestes versículos, constatamos que ele indica a sua essência (o que é o evangelho), a sua origem (de onde provém) e o seu fundamento (onde se baseia).

a. A essência da salvação

Precisamos juntar as três cláusulas que afirmam que Deus "nos salvou", "nos chamou com santa vocação" e "trouxe à luz a vida e a imortalidade". Isto explica que a salvação vai muito além do perdão. O Deus que nos "salvou" é também o que, ao mesmo tempo, "nos chamou com santa vocação", ou seja, que nos "cha­mou para sermos santos". O chamamento cristão é uma vocação santa. Quando Deus chama alguém para si, também o chama à santidade. A isto Paulo dera muita ênfase em suas cartas anterio­res. "Deus não nos chamou para a impureza, e, sim, em santificação", porque todos fomos "chamados para ser santos", chamados para viver como povo santo de Deus e separado para ele (1 Ts 4:7; 1 Co 1: 2). Sendo a santidade uma parte integrante no plano de Deus para a salvação, também o é a "imortalidade", da qual escreve no versículo seguinte (v.10). De fato, "perdão", "santi­dade" e "imortalidade" são três aspectos da grande "salvação" de Deus.
O termo "salvação" precisa ser urgentemente libertado do con­ceito medíocre e pobre com o qual tendemos a degradá-lo. "Sal­vação" é um termo majestoso, que evidencia todo o amplo pro­pósito de Deus, pelo qual ele justifica, santifica e glorifica o seu povo: primeiramente, perdoando as nossas ofensas e aceitando-nos como justos ao nos olhar através de Cristo; depois transformando-nos progressivamente, pelo seu Espírito, para sermos conforme a imagem do seu Filho, até que finalmente nos tornemos iguais a Cristo no céu, com novos corpos, num mundo novo. Não deve­mos minimizar a grandeza de "tão grande salvação" (Hb 2:3).

b. A origem da salvação

De onde provém tão grande salvação? A resposta de Paulo é: "Não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determina­ção e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos" (v.9). Se quiséssemos acompanhar o manancial da salva­ção até a sua origem, deveríamos então voltar para trás, através do tempo, em direção à eternidade do passado. As palavras do apóstolo são mesmo: "antes dos tempos eternos"[1] e são traduzi­das de diversas formas: "antes do princípio do mundo" (BV), "antes do tempo existir" (CIN), ou "antes de todos os séculos" (PAPF).
Para não pairar qualquer dúvida sobre a verdade de que a pre­destinação e eleição por Deus pertence à eternidade e não ao tem­po, Paulo faz uso de um particípio aorístico para indicar que Deus de fato nos deu algo (dotheisan) desde toda a eternidade, em Cris­to. O que Deus nos deu foi "a sua própria determinação e graça", ou "a sua determinação, ou propósito, de nos dar graça".   A sua determinação de dar a salvação não era arbitrária, mas sim funda­da em sua graça.[2] Fica claro, por conseguinte, que a fonte de nos­sa salvação não são as nossas próprias obras, visto que Deus nos deu a sua própria determinação da graça em Cristo antes que pra­ticássemos quaisquer boas obras, antes de termos nascido e de ter­mos podido fazer quaisquer obras meritórias; antes mesmo da História, antes do tempo, na eternidade.
Temos que confessar que a doutrina da eleição é matéria difí­cil para mentes finitas mas é, incontestavelmente, uma doutrina bíblica. Ela enfatiza que a salvação é devida exclusivamente à graça de Deus, e não aos méritos humanos; não às nossas obras realizadas no tempo, mas à determinação que Deus concebeu na eternidade; "aquela determinação", como se expressa o Rev. Ellicott, "que não surgiu de algo fora dele, mas que brotou unica­mente das maiores profundezas da divina eudokia".[3] Ou, nas palavras de E. K. Srmpson: "As escolhas do Senhor têm as suas razões imperscrutáveis, mas não se baseiam na elegibilidade dos escolhidos".[4] Assim sendo, a divina determinação, ou propósi­to, da eleição é um mistério para a mente humana, já que não se pode aspirar compreender os pensamentos secretos e as decisões da mente de Deus. Contudo, a doutrina da eleição nunca é in­troduzida na Escritura para despertar ou para diminuir a nossa curiosidade carnal, mas sempre tendo um propósito bem prático. De um lado ela desperta uma profunda humildade e gratidão, por excluir todo o orgulho próprio. De outro lado, traz paz e segu­rança, porque nada pode acalmar os nossos temores pela nossa própria estabilidade como o conhecimento de que a nossa segu­rança depende, em última análise, não de nós mesmos, mas da própria determinação e graça de Deus.

c. O fundamento da salvação

A nossa salvação tem um firme fundamento na obra histórica efe­tuada por Jesus Cristo no seu primeiro aparecimento.   Porque, conquanto a graça de Deus nos tenha sido "dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos", ela foi "manifestada agora", no tem­po, "pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus", ou seja, pelo aparecimento do mesmo Jesus Cristo. Os dois estágios divi­nos foram em e através de Jesus Cristo; a dádiva foi eterna e secre­ta, mas a manifestação foi histórica e pública.
O que então Cristo realizou, ao aparecer e manifestar a eterna determinação e graça de Deus? A isto Paulo dá uma dupla respos­ta no versículo 10. Primeiramente, Cristo "destruiu a morte". Em segundo lugar, "trouxe à luz a vida e a imortalidade, median­te o evangelho".
Em primeiro lugar, Cristo destruiu a morte.
"Morte" é, de fato, a palavra que bem sintetiza a nossa con­dição humana resultante do pecado. Porque a morte é o "salário" do pecado, é a sua horrível punição (Rm 6: 23). E é assim para cada uma das formas que a morte assume. A Escritura fala da morte em três sentidos: a morte física, a alma separada do corpo; a morte espiritual, a alma separada de Deus; e a morte eterna, a alma e o corpo separados de Deus para sempre. Todas as três mor­tes são devidas ao pecado; são a sua terrível, porém justa, recom­pensa. Mas Jesus "destruiu" a morte. O sentido não pode ser o de que ele já a tenha eliminado, conforme sabemos por nossa pró­pria experiência diária. Os pecadores ainda estão "mortos em delitos e pecados", nos quais andam (Ef 2: 1-2), até que Deus lhes dê a vida em Cristo. Todos os seres humanos morrem fisicamen­te e continuarão a morrer, com exceção da geração que estiver viva quando Cristo retornar em glória. E muitos experimentarão a "segunda morte", que é uma das apavorantes expressões usadas no livro do Apocalipse para designar o inferno (p. ex.: Ap. 20: 14; 21:8). Com efeito, anteriormente Paulo escrevera que a des­truição final da morte ainda se encontra no futuro, quando ela, o último inimigo de Deus, será destruída (1 Co 15: 26). Só depois da volta de Cristo e da ressurreição dos mortos é que haveremos de proclamar com júbilo: "tragada foi a morte pela vitória" (1 Co 15:54;cf.Ap21:4).
O que Paulo afirma, triunfantemente, neste versículo, é que, em seu primeiro aparecimento, Cristo decisivamente derrotou a morte. O verbo grego katargeö não permite, por si mesmo, con­cluirmos qual seja o seu significado, pois pode ser empregado com muitos sentidos, e assim só o contexto pode determinar qual o seu correto significado. Contudo, o seu primeiro e mais notável sen­tido é o de "tornar ineficiente, sem poder, inútil" ou "anular" (AG). Assim Paulo compara a morte a um escorpião, do qual se arrancou o ferrão; e também a um comandante, cujas tropas fo­ram vencidas. O apóstolo pode, portanto, levantar a sua voz em desafio:   "Onde está, ó morte, a tua vitória? onde está, ó morte, o teu aguilhão?" (1 Co 15: 55). Porque Cristo destruiu o poder da morte (AG).
É muito significativo que este mesmo verbo katargeö é usado no Novo Testamento com referência ao diabo e à nossa natureza decaída, assim como o é também com referência à morte (Hb 2: 14; Rm 6: 6). Nem o diabo, nem a nossa natureza decaída e tam­pouco a morte foram aniquilados; mas pelo poder de Cristo, a ti­rania de cada um deles foi destruída, de forma que os que estão em Cristo estão em liberdade.
Consideremos particularmente como foi que Cristo "destruiu" ou "anulou" a morte. X A morte física já não é mais o terrível monstro que nos pare­cia antes, e que continua ainda sendo para muitos, a quem Cristo ainda não libertou. Pelo pavor da morte eles ainda estão "sujeitos à escravidão por toda a vida" (Hb 2: 15). Já para os crentes em Cristo a morte significa simplesmente "dormir" em Cristo; e isto é, na verdade, um "lucro", por ser o caminho para estar "com Cris­to, o que é incomparavelmente melhor". É um dos bens que se tornam nossos, quando somos de Cristo (1 Ts 4:14-15; Fp 1:21-23; 1 Co 3: 22-23). A morte tornou-se tão inofensiva, que Jesus che­gou a afirmar que o crente, ainda que morra, "não morrerá, eter­namente" (Jo 11: 25-26). O que é absolutamente certo é que a morte jamais conseguirá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo (Rm 8:38-39).
A morte espiritual, para os cristãos, deu lugar à vida eterna, que é a comunhão com Deus, iniciada aqui na terra e que será perfeita no céu. Além disso, os que estão em Cristo "de nenhum mo­do sofrerão os danos da segunda morte", porque já passaram da morte para a vida (Ap 2:11; Jo 5:24; e 1 Jo3:14).
Em segundo lugar, Cristo "trouxe à luz a vida e a imortalidade mediante o evangelho". Esta é a contrapartida positiva. Foi por meio de sua morte e ressurreição que Cristo destruiu a morte.  É através do evangelho que ele agora revela o que fez, e oferece aos homens a vida e a imortalidade que para eles conquistou. Não está claro se devemos fazer distinção entre as palavras "vida" e "imortalidade", pois podem ser sinônimas, a segunda definindo a primeira. Ou seja, a espécie de vida que Cristo nos garantiu, e que agora nos revela e nos oferece através do evangelho, é a vida eter­na, uma vida que é imortal e incorruptível. Somente Deus possui a imortalidade em si mesmo, mas Cristo a dá aos homens. Até mesmo os nossos corpos participarão dessa imortalidade, após a ressurrei­ção (1 Co 15: 42, 52-54). Assim será a herança que receberemos (1 Pe 1:4). De outro lado, como C. K. Barrett escreve: "possivel­mente 'vida' refira-se à nova vida, possível de ser obtida neste mun­do; e 'imortalidade' ao seu prolongamento depois da morte".[5] Qualquer que seja a nossa conceituação dessas palavras, ambas são "reveladas" ou "trazidas à luz" através do evangelho. Há muitas alusões no Velho Testamento a uma vida após a morte, e alguns lampejos dessa fé, mas de maneira geral a revelação do Antigo Tes­tamento é o que o Rev. Moule chamou de "um lusco-fusco",[6] em comparação com o Novo Testamento. O evangelho, contudo, trou­xe torrentes de luz sobre a dádiva da vida e da imortalidade, atra­vés da vitória de Cristo sobre a morte.
A fim de apreciarmos a plena força desta afirmativa cristã, pre­cisamos relembrar quem é este que a está proferindo. Quem é este que escreve com tanta segurança sobre a vida e a morte, sobre a destruição da morte e a revelação da vida? É alguém que encara a iminente expectativa da sua própria morte. A qualquer hora ele espera receber a sua sentença de morte. Já soa em seus ouvidos a sua ultimação final. Em sua imaginação já pode ver o lampejar da espada do carrasco. E, não obstante, na dura presença da morte, ele brada alto: "Cristo destruiu a morte". Isto é fé cristã triunfante!
Como suspiramos e anelamos que a igreja de nossos dias recu­pere a sua esperança na vitória de Jesus Cristo, que proclame estas boas novas a este mundo, para o qual morte continua sendo uma palavra proibida.    A revista "The Observer" dedicou uma edição inteira ao tema "morte", em outubro de 1968, e comentou: "Lon­ge de estar preparada para a morte, a sociedade moderna confe­riu a esta palavra o caráter de coisa não mencionável. . . aplica­mos todos os nossos talentos para nos esquivar da expectativa de morrer e, quando a hora chega, reagimos de qualquer forma, ou com excessiva trivialidade, ou até com total desespero".
Um dos testes mais reveladores que se pode aplicar a qualquer religião diz respeito à atitude da mesma em relação à morte. Ava­liada por este teste, muito "cristianismo" por aí é achado em falta, com suas roupagens pretas, e com seus cânticos plangentes e suas missas de réquiem. É claro que morrer pode ser muito desagradá­vel e a perda de um ente amado pode trazer amarga tristeza. Mas a própria morte foi derrotada, e "bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor" (Ap 14: 13). O epitáfio adequa­do para um crente em Cristo não é a lúgubre e incerta petição, requiescat in pace (descanse em paz), mas a firme e jubilosa afir­mação: "Cristo venceu a morte", ou para quem prefira línguas clássicas, o equivalente a isso em grego ou latim!
Tal é, pois, a salvação que nos é oferecida pelo evangelho, da qual nos apropriamos em Cristo. Caracteriza-se pela recriação e transformação do homem na santidade de Cristo, aqui e além. A origem desta salvação é o eterno propósito da graça de Deus. O seu fundamento é o aparecimento histórico de Cristo e a destruição da morte por ele.
Juntando estas grandes verdades, podemos encontrar cinco eta­pas que caracterizam o propósito salvífico de Deus. A primeira é o dom eterno da sua graça, que nos é oferecido em Cristo. A se­gunda é o aparecimento histórico de Cristo para destruir a morte através da sua morte e ressurreição. A terceira etapa é o convite pessoal que Deus faz ao pecador, por meio da pregação do evange­lho. A quarta é a santificação moral dos crentes pelo Espírito San­to. E a quinta etapa é a perfeição celestial final, na qual o santo chamamento é consumado.
A extensão do propósito da graça de Deus é realmente sublime, tal como Paulo o delineia, partindo da eternidade passada, passan­do pela sua realização histórica em Jesus Cristo, e culminando no cristão, que tem o seu destino final com Cristo e à semelhança de Cristo, numa futura imortalidade. Não é realmente maravilhoso que, mesmo estando o corpo de Paulo confinado ao espaço apertado de uma cela subterrânea, o seu coração e a sua mente possam elevar-se até a eternidade?


4. Nossa responsabilidade perante o evangelho divino (vs. 11-18)

Para o qual eu fui designado pregador, apóstolo e mestre, 12 e por isso estou sofrendo estas coisas, todavia não me envergonho; por­que sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é podero­so para guardar o meu depósito até aquele dia. 13Mantém o pa­drão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. 14Guarda o bom depósito, mediante o Espirito Santo que habita em nós. 15Estás ciente de que todos os da Ásia me abandonaram; dentre eles cito Figelo e Hermógenes. 16Conceda o Senhor misericórdia à casa de Onesíforo, por­que muitas vezes me deu ânimo e nunca se envergonhou das minhas algemas. 17Antes, tendo ele chegado a Roma, me procurou soli­citamente até me encontrar. 18O Senhor lhe conceda, naquele dia, achar misericórdia da parte do Senhor. E tu sabes, melhor do que eu, quantos serviços me prestou ele em Éfeso.
Se perguntássemos a Paulo qual é a primeira responsabilidade de alguém em relação ao evangelho, ele responderia, sem dúvida, que é receber a boa nova e vivê-la. Mas o seu interesse aqui não se refere à responsabilidade do incrédulo, mas à do cristão perante o evangelho, depois de o ter abraçado. Paulo dá três respostas a esta pergunta:

a. Nossa responsabilidade de comunicar o evangelho (v. 11)

Se "a vida e a imortalidade" que Cristo conquistou são trazidas à luz "mediante o evangelho", então, naturalmente, é imperativo que proclamemos o evangelho. Assim Paulo continua: "para o qual (evangelho) eu fui designado pregador, apóstolo e mestre". A mesma combinação de palavras ocorre em 1 Timóteo 2: 7, e nas duas passagens Paulo usa o ego enfático, sem dúvida para ex­pressar a sua "sensação de surpresa consigo mesmo"[7] por lhe ter sido conferido tamanho privilégio.
Talvez possamos nos referir às três funções de "apóstolo", "pre­gador" e "mestre", dizendo que os apóstolos formularam o evan­gelho, os pregadores o proclamam como arautos, e os mestres são os que instruem de forma sistemática acerca de suas doutrinas e das implicações éticas decorrentes.
Hoje não há mais apóstolos de Cristo. Já vimos anteriormente o quanto é restrito, no Novo Testamento, o uso deste termo. O evangelho foi formulado pelos apóstolos e por eles legado à Igreja. Acha-se em sua forma definitiva registrado no Novo Testamento. Esta fé apostólica neotestamentária é normativa para a Igreja de todos os tempos e lugares. A Igreja está edificada "sobre o funda­mento dos apóstolos e profetas" (Ef 2: 20). Não há outro evange­lho. Não pode haver nenhum outro evangelho.
Embora não haja apóstolos de Cristo em nossos dias, certamen­te há pregadores e mestres, homens e mulheres chamados por Deus para se consagrarem à obra da pregação e do ensino. Notemos que eles são chamados para pregar e para ensinar o evangelho. É muito ao gosto de círculos teológicos fazer uma clara distinção en­tre o kërygma (a pregação) e o didache (o ensino). Ao kerygma corresponde essencialmente a boa nova de Cristo crucificado e ressurreto, com o apelo ao arrependimento e à fé; no didache corres­ponde principalmente a instrução ética aos convertidos. Esta distinção pode ser útil, mas é perigosa. Ela é benéfica somente se nos lembrarmos de que os dois de entrelaçam. Havia muito de didache no kërygma e muito de kerygma no didachê. Além do mais, ambos concernem ao evangelho, sendo que o kèrygma era a proclamação de sua essência, enquanto que o didache incluía as grandes doutrinas que o sustentam, assim como a conduta moral dele decorrente.
A referência a "testemunho", no versículo 8, que já conside­ramos anteriormente, acrescenta um quarto termo a esta lista. Ele nos lembra que, embora não haja apóstolos hoje, e apesar de so­mente alguns serem chamados ao ministério da pregação e do ensino, cada crente em Cristo deve testemunhar de Jesus Cristo a par­tir de sua experiência pessoal.

b. Nossa responsabilidade de sofrer pelo evangelho (v. 12a)

Paulo havia ordenado a Timóteo que não se envergonhasse, mas que assumisse a sua parte de sofrimento pelo evangelho (v.8), tema este a que se dedicou no segundo capítulo desta carta. Mas agora ele enfatiza que não está exigindo de Timóteo algo que ele mesmo, Paulo, não estava preparado para suportar: ". . . por cuja causa padeço. . ., mas não me envergonho...". Qual a razão para este relacionamento entre o sofrimento é o evangelho? Que há com o evangelho, que os homens odeiam e a ele se opõem, e que por sua causa os que o pregam têm de sofrer?
Dá-se o seguinte: os pecadores suo salvos por Deus em virtude da própria determinação e graça divina, e não em virtude das boas obras deles (v.9). O que ofende as pessoas é a imerecida gratuida­de do evangelho. O homem "natural" ou não regenerado odeia ter de admitir a gravidade do seu pecado e culpa, a necessidade da graça de Deus e a morte expiatória de Cristo para salvá-lo, e conseqüentemente a sua inegável dívida para com a cruz. É isto que Paulo entendeu por "pedra de tropeço da cruz". Muitos pre­gadores sucumbem à tentação do silêncio com respeito a esse as­pecto. Pregam o mérito dos homens em vez de Cristo e sua cruz, e substituem um pelo outro, "somente para não serem persegui­dos por causa da cruz de Cristo" (Gl 6: 12; cf. 5:11). Ninguém consegue pregar com fidelidade o Cristo crucificado sem sofrer oposição, ou até mesmo perseguição.

c. Nossa responsabilidade de zelar pelo evangelho (vs. 12b-18)

Deixando de lado, por enquanto, a segunda parte do versículo 12, chegamos à dupla exortação de Paulo a Timóteo, nos dois versícu­los seguintes: "Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste" (v.13); "guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós" (v. 14). Aqui Paulo se refere ao evangelho, à fé apostólica, usando duas expressões. O evangelho é tanto um pa­drão de sãs palavras (v.13), como um depósito precioso (v.14).

"Sãs" palavras são palavras "saudáveis". A expressão grega é empregada nos evangelhos nos casos de pessoas curadas por Jesus. Anteriormente eram deformes ou doentes; agora estavam bem ou "sãs". Assim, a fé cristã é a "sã doutrina" (4: 3), que consiste de "palavras sãs", por não ser mutilada ou enferma, mas "sadia", ou "completa". É o que Paulo mencionara, anteriormente, como sendo "todo o desígnio de Deus" (At 20:27).

Além disso, essas "sãs palavras" foram dadas por Paulo a Timó­teo num "padrão". A palavra grega aqui é hypotyposis. A BLH traduz por "exemplo". E o Dr. Guthrie diz que ela significa um "esboço rápido, como o faria um arquiteto, antes de lançar no pa­pel os planos detalhados de uma construção."[8] Neste último ca­no Paulo estaria sugerindo a Timóteo que ampliasse, expusesse e tiplicasse o ensino apostólico. Parece-me que essa interpretação não se harmoniza com o contexto, principalmente num confronto com o versículo seguinte. A única outra ocorrência de hypotyposis no Novo Testamento encontra-se na primeira carta de Paulo a Ti­móteo, onde ele descreve a si mesmo como um objeto da maravi­lhosa misericórdia e da perfeita paciência de Cristo, como um "exemplo dos que haviam de crer nele" (1: 16). Arndt e Gingrich, que optaram por "modelo" ou "exemplo" como sendo a tradução usual, sugerem que essa palavra é empregada mais com o sentido de "protótipo" em 1 Timóteo 1: 16 e com o sentido de "padrão" em 2 Timóteo 1: 13. Neste caso Paulo estaria ordenando a Timó­teo que se conservasse como um padrão de sãs palavras, isto é, "como um modelo de ensino sadio", aquilo que ouvira do apósto­lo. Isto certamente corresponde ao ensino geral da carta e reflete fielmente a ênfase da sentença na primeira palavra, "modelo" ou "padrão".

Assim, o ensino de Paulo deve ser uma regra ou diretriz para Timóteo, da qual este não deve se afastar. Pelo contrário, deve obedecer a essa regra, ou melhor, deve apegar-se a ela com firme­za (eche). E assim deve proceder "na fé e no amor que há em Cris­to Jesus". Isto é, Paulo não está tão preocupado com o que Ti­móteo deve fazer, mas sim com o modo como ele o fará. As con­vicções doutrinárias pessoais de Timóteo e a instrução recebida de outros, assim como as que reteve firmemente dos ensinos de Paulo, devem ser manifestadas com fé e amor. Timóteo deve pro­curar estas qualidades em Cristo: uma crença sincera e um amor pleno.

A fé apostólica não é somente um "padrão de sãs palavras"; é também o "bom depósito" (hë kalë parathtëkë). Ou como ex-pressa a BLH: "as boas coisas que foram entregues a você".  Sim, o evangelho é um tesouro, depositado em custódia na igreja. Cris­to o confiou a Paulo; e Paulo, por sua vez, o confiou a Timóteo.
Timóteo deveria "guardá-lo". É precisamente o mesmo apelo que Paulo lançou no final da sua primeira carta (6: 20), com a única diferença de que agora ele o chama de "bom", literalmente "belo" depósito. O verbo (phylassõj tem o sentido de guardar algo "para que não se perca ou se danifique" (AG). É emprega­do com a idéia de guardar um palácio contra saqueadores, e bens contra ladrões (Lc 11: 21; At 22: 20). Fora há hereges prontos a corromper o evangelho e desta forma roubar da igreja o inesti­mável tesouro que lhe foi confiado. Cabe a Timóteo colocar-se em guarda.

Deveria ele guardar o evangelho com toda a firmeza possível em vista do que acontecera em Éfeso (a capital da província ro­mana da Ásia) e seus arredores, onde Timóteo se encontrava (v.15). O tempo aoristo do verbo "me abandonaram" parece referir-se a um acontecimento especial. É mais provável que tenha sido o momento da segunda detenção de Paulo. As igrejas da Ásia, onde trabalhara por vários anos, tornaram-se muito dependentes dele, e talvez a prisão do apóstolo lhes tenha incutido a idéia de que a fé cristã agora estava perdida. A reação deles talvez tenha sido repudiar Paulo ou recusar-se a reconhecê-lo. De Figelo e Hermógenes nada sabemos de concreto, mas a menção de seus nomes nos indica que possivelmente eles tenham sido os cabeças da opo­sição. De qualquer modo, Paulo via nesse afastamento das igre­jas da Ásia mais do que uma simples deserção pessoal dele; era, sim, uma rejeição à autoridade apostólica. Deve ter-lhe sido algo bastante sério, principalmente porque alguns anos antes, durante a sua permanência em Éfeso por dois anos e meio, Lucas registra que "todos os habitantes da Ásia ouviram a palavra do Senhor, e muitos creram" (At 19: 10). Agora "os que estão na Ásia" ha­viam voltado as costas a Paulo. A um grande despertamento se­guiu-se uma grande deserção. "A todos os olhos, menos aos da fé, deve ter parecido que o evangelho estava às vésperas da extin­ção".[9]

Uma grande exceção parece ter sido um homem chamado Onesíforo, o qual repetidas vezes acolhera Paulo em sua casa (literal­mente "reanimou-o", v.16) e que, em Éfeso, prestara-lhe muitos serviços (v.18). Onesíforo permanecera, deste modo, fiel ao signi­ficado do seu nome: "portador de préstimos". Além disso, não se envorgonhara das algemas de Paulo (v.16), o que dá a entender que não repudiou a Paulo quando preso, e que o seguiu, e mesmo o acompanhou a Roma, procurando-o até encontrá-lo no calabouço. Paulo tinha boas razões para ser grato por este amigo fiel e co­rajoso. Não é surpreendente, pois, que se expresse por duas vezes em oração (vs. 16, 18), primeiro por sua casa ("conceda o Senhor misericórdia à casa de Onesíforo") e depois, especificamente, por Onesíforo ("O Senhor lhe conceda, naquele dia, achar misericórdia da parte do Senhor").
Vários comentaristas, notadamente católicos romanos, partin­do das referências à casa de Onesíforo (mencionada novamente em 4: 19) e à expressão "naquele dia", têm argumentado que One­síforo àquela altura estava morto e que, por conseguinte, no versí­culo 18 temos uma oração em favor de um falecido. Isto, na verda­de, não passa de uma simples e gratuita conjectura. O fato de Paulo mencionar primeiro Onesíforo e depois sua casa não dá a entender necessariamente que estejam eles separados em virtude de sua morte; é mais viável crer que fosse devido à distância: Onesíforo estava ainda em Roma, enquanto que sua família perma­necia em casa, em Éfeso. "Considero que é uma oração em sepa­rado pelo homem e por sua família", escreve o Rev. Moule, "por estarem então separados um do outro, por terras e mares . . . Não há necessidade alguma de interpretar que Onesíforo tivesse morri­do. A separação de sua família, por uma viagem, isso é o que se de­preende da passagem". [10]

Em todo o caso, todos na Ásia, como Timóteo estava bem ciente, voltaram as costas ao apóstolo, com exceção do leal Onesíforo e de sua família. Era em tal situação de apostasia quase universal que Timóteo deveria "guardar o bom depósito" e "manter o padrão das sãs palavras", ou seja, deveria preservar o evangelho ima­culado e genuíno. Já seria uma grande responsabilidade para qual­quer um, quanto mais para alguém com o temperamento de Timóteo. Como poderia então permanecer firme?

O apóstolo dá a Timóteo a base segura de que ele necessita. Ti­móteo não pode pensar em guardar o tesouro do evangelho com força própria; somente poderá fazê-lo "mediante o Espírito San­to que habita em nós (v.14). A mesma verdade é ensinada na se­gunda parte do versículo 12, que até aqui ainda não consideramos. A maior parte dos cristãos está familiarizada com a tradução "por­que sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia". Estas palavras são verdadeiras e muitas outras passagens bíblicas as confirmam; quan­to à estrutura lingüística, foram traduzidas acuradamente. De fato, tanto o verbo "guardar" como o substantivo "depósito" são preci­samente as mesmas palavras no versículo 12 e no versículo 14 e ainda em 1 Timóteo 6: 20. Presume-se, então, que "o meu depó­sito" não é o que eu lhe confiei (minha alma ou eu mesmo, como em 1 Pedro 4: 19), mas aquilo que ele confiou a mim (o evange­lho).

O sentido, pois, é este:Paulo podia dizer que o depósito é "meu", porque Cristo lho confiou. Contudo, Paulo estava persuadido de que era Cristo que iria conservá-lo seguro "até aquele dia", quando ele teria de prestar contas da sua mordomia. Em que se baseava a sua confiança? Somente numa coisa: "eu o conheço". Paulo conhecia a Cristo, em quem confiava, e estava convencido da ca­pacidade dele para manter o depósito em segurança: "porque sei em quem tenho crido, e estou bem certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia" (v.12). Cristo o confiou a Paulo, é verdade, mas o próprio Cristo cuidará do depósito. E ago­ra Paulo o está confiando a Timóteo. E Timóteo pode ter esta mes­ma segurança.

Aqui há um estímulo muito grande. Em última análise, é Deus mesmo quem preserva o evangelho. Ele se responsabiliza por sua conservação. "Sobre qualquer outro fundamento a obra da prega­ção não se sustentaria nem por um momento".[11] Podemos ver a fé evangélica encontrando oposição em toda parte, e a mensagem apostólica sendo ridicularizada. Talvez vejamos uma crescente apostasia crescer na igreja, muitos de nossa geração abandonando a fé de seus pais. Mas não temos nada a temer! Deus nunca permi­tirá que a luz do evangelho se apague. É verdade que ele o confiou a nós, frágeis e falíveis criaturas. Ele colocou o seu tesouro em frá­geis vasos de barro, e nós devemos assumir a nossa parte na guarda e na defesa da verdade. Contudo, mesmo tendo entregue o depósi­to aos cuidados de nossas mãos, Deus não retirou as suas mãos desse depósito. Ele mesmo é, afinal, o seu melhor vigia; ele saberá preservar a verdade que confiou à Igreja. Isto nós sabemos, porque sabemos em quem depositamos a nossa confiança, e em quem con­tinuamos a confiar.


[1] pro chronön aiöniön, A mesma expressão ocorre em Tt 1: 2, com refe­rência à promessa de vida feita por Deus, cf. Rm 16:25.
[2] Veja Rm 8:28;9:11 e Ef 1:11 para outros exemplos da predestinação divina, "determinação" (prothesis) de salvação.
[3] Ellicott, p. 115; eudokia significa "grande prazer"
[4] Simpson,p. 125.
[5] Barrett, p. 95
[6] Moule, p. 50
[7] Guthrie, p. 73
[8] Guthrie, p. 132
[9] Moule, p. 16
[10] Moule, pp. 67, 68.
[11] Barrett, p. 97

sábado, 7 de abril de 2012

SÉRIE “ANTES DE TUDO PREGA O EVANGELHO” 2

SÉRIE  “ANTES DE TUDO PREGA O EVANGELHO” 2





2. Timóteo, o filho amado de Paulo (vs. 2-8)

Ao amado filho Timóteo: Graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus nosso Senhor. 3Dou graças a Deus, a quem, desde os meus antepassados, sirvo com consciência pura, porque sem cessar me lembro de ti nas minhas orações, noite e dia. 4Lembrado das tuas lagrimas, estou ansioso por ver-te, para que eu transborde de alegria,  5pela recordação que guardo de tua fé sem fingimento, a mesma que primeiramente habitou em tua avó Lóide, e em tua mãe Eunice, e estou certo de que também em ti. 6Por esta razão, pois, te admoesto que reavives o dom de Deus, que há em ti pela imposição de minhas mãos. 7Porque Deus não nos tem dado espirito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação. 8Não te envergonhes, portanto, do teste­munho de nosso Senhor, nem do seu encarcerado que sou eu; pelo contrário, participa comigo dos sofrimentos, a favor do evan­gelho, segundo o poder de Deus.

Aqui Paulo chama Timóteo de "amado filho", e em outra parte "filho amado e fiel no Senhor" (1 Co 4: 17), presumivelmente porque foi o instrumento humano usado para a conversão de Ti­móteo. Certamente a razão por que podia referir-se aos coríntios como "filhos meus amados", era que "eu pelo evangelho vos ge­rei em Cristo Jesus" (1 Co 4: 14, 15). Presumimos, pois, que quan­do Paulo e seu companheiro visitaram Listra, em sua primeira viagem missionária, "onde anunciavam o evangelho" (Atos 14: 6-7), Timóteo ouviu e aceitou as boas novas, de forma que, quan­do Paulo tornou a visitar Listra, alguns anos mais tarde em sua segunda viagem missionária, "havia ali um discípulo chamado Timó­teo", o qual já fizera tal progresso na vida cristã que "dele davam bom testemunho os irmãos em Listra e Icônio" (At 16:1-2).

A seu "amado filho" Paulo envia agora a costumeira saudação de "graça e paz", acrescentando, nas duas cartas a Timóteo, "mi­sericórdia". Podemos estar certos de que esta saudação em três palavras não é mera convenção epistolar, pois estas são palavras de profunda importância teológica. Elas nos comunicam muito acerca da triste condição do homem em pecado e, apesar disso, do imutável amor de Deus pelo pecador. Porque assim como a graça é a bondade de Deus para com os indignos, a misericórdia é mostrada aos fracos e desamparados, incapazes de ajudarem-se a si mesmos. Nas parábolas de Jesus, foi misericórdia que o bom samaritano demonstrou à vítima dos assaltantes; foi misericórdia que o rei conferiu a seu servo que estava tão endividado a ponto de não poder pagar a sua dívida (Lc 10: 37; Mt 18: 33). Foi tam­bém misericórdia que converteu Saulo de Tarso, ferrenho blasfemador e perseguidor. "Mas obtive misericórdia", escrevera Paulo em sua primeira carta a Timóteo (1 Tm 1: 13; 16).   "Paz", por outro lado, é reconciliação, restauração da harmonia em vidas ar­ruinadas pela discórdia. Podemos talvez sintetizar estas três bên­çãos do amor de Deus como sendo graça ao indigno, misericór­dia ao desamparado e paz ao aflito, permanecendo Deus Pai e Cristo Jesus, nosso Senhor, a fonte única de onde flui essa tripla torrente.

Segue então um parágrafo de cunho bem pessoal, no qual o apóstolo afirma não ter se esquecido de Timóteo. "Sem cessar me lembro de ti em minhas orações, noite e dia" (v.3), "lembrado das tuas lágrimas" (v.4) e "pela recordação que guardo de tua fé sem fingimento" (v.5). E sempre que me lembro de ti, Timóteo, "dou graças a Deus" (v.3).

Este último ponto é significativo. Mostra que Paulo reconhecia ter sido Deus quem fizera de Timóteo o que ele de fato era. Timó­teo não era um apóstolo como Paulo. Isso eles deixaram bem cla­ro, ao escreverem em conjunto cartas às igrejas, como por exem­plo na carta aos Colossenses: "Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus e ó irmão Timóteo. . .". Timóteo era um ir­mão em Cristo. Era também um ministro cristão, um missionário e representante do apóstolo. E Deus vinha operando na vida de Timóteo para fazer dele uma pessoa com tais atributos. Direta ou indiretamente, Paulo menciona, neste parágrafo, as quatro maiores influências que teriam contribuído para a formação de Timóteo.

a. A formação familiar

Paulo refere-se, neste parágrafo, a seus antepassados (v.3), dele e de Timóteo, e também à mãe e à avó de Timóteo (v.5). E isto faz sentido porque toda pessoa é, em alto grau, afetada por razões de ordem genética. A maior influência na formação de cada um de nós deve-se ou à ascendência ou ao lar. Por esta mesma razão, boas biografias nunca começam abordando as pessoas de que tra­tam, mas os seus pais e possivelmente também os seus avós. É bem verdade que ninguém pode herdar a fé de seus pais, do mesmo modo como herda traços de personalidade, mas uma criança pode ser conduzida à fé pelo ensino, pelo exemplo e pelas orações de seus pais.

Timóteo provinha de um lar temente a Deus. Lucas nos con­ta que ele era filho de um casamento misto, em que o pai era grego e a mãe judia (Atos 16: 1). Pode-se presumir que o seu pai fosse descrente, mas a mãe Eunice era uma judia crente, que se tornou cristã. E, antes da mãe, sua avó Lóide era também con­vertida, visto que Paulo escreve sobre a "fé sem fingimento" das três gerações (v.5). Talvez os três, avó, mãe e filho, devessem sua conversão a Paulo, quando levou o evangelho a Listra. Mesmo antes da conversão a Cristo, essas mulheres tementes a Deus ha­viam instruído Timóteo no Antigo Testamento, assim que, "des­de a meninice" fora inteirado das "sagradas letras" (3: 15). Calvino comenta, com muita propriedade, que Timóteo "foi criado de tal modo que pôde sugar a piedade junto com o leite materno". [1]

Paulo poderia dizer praticamente o mesmo de si próprio. Estivera servindo a Deus "com uma consciência pura", assim como os seus antepassados o fizeram antes dele. É claro que a sua fé se enriqueceu, tornou-se mais completa e mais profunda quan­do Deus lhe revelou Cristo. Contudo, ainda era substancialmente a mesma fé dos crentes do Antigo Testamento, como Abraão e Davi, pois era o mesmo Deus no qual todos eles sempre creram. É como se lê em Romanos 4. Não é de se estranhar, então, que Paulo tenha afirmado ao procurador Félix: "Sirvo ao Deus de nossos pais" (Atos 24: 14; cf. 26: 6). Devemos sempre lembrar disso ao testemunharmos aos judeus contemporâneos. A conver­são de um judeu a Cristo não é de forma alguma um ato de infidelidade a seus antepassados; é, isto sim, o cumprimento da fé e da esperança de seus antepassados.

Voltando a Timóteo, a primeira influência em sua vida foi a sua educação no lar e, em particular, a sua mãe e a sua avó, cren­tes sinceras, que lhe falaram das Escrituras desde a infância. De igual forma, é uma bênção de valor incalculável, da parte de Deus, hoje nascer e ser criado num lar cristão.

b. A amizade espiritual

Depois de nossos pais, os nossos amigos são os que mais nos influ­enciam, especialmente se são, de algum modo, nossos professores. E Paulo era para Timóteo um mestre e amigo excepcional. Já vi­mos que Paulo era o "pai espiritual" de Timóteo. Paulo o conduzira a Cristo, por isso não se esqueceu dele, nem o abandonou. Paulo lembrava-se constantemente dele, como diz repetidamen­te nesta passagem. Também o tomara consigo em suas viagens e o treinara como um aprendiz. Na última vez em que se separaram, Timóteo foi incapaz de conter as lágrimas. E agora, recordando-se daquelas lágrimas, Paulo almejava "noite e dia" tornar a vê-lo, "para que eu transborde de alegria" (v.4). O Rev. Handley Moule interpreta apipothön como "ardente saudade".[2] Entrementes, Paulo orava sem cessar por Timóteo (v.3) e, de tempos em tempos, escrevia-lhe cartas de aconselhamento e encorajamento, tais como esta.

Tal amizade crista, incluindo o companheirismo, as cartas e as orações que a expressavam, certamente teve um poderoso efeito na formação do jovem Timóteo, fortalecendo-o e sustentando-o em sua vida e no serviço cristãos.

Eu agradeço a Deus pelo homem que me levou a Cristo e pela extraordinária devoção com que me acompanhou nos primeiros anos da minha vida cristã. Ele me escrevia semanalmente, creio que por sete anos. Também orava por mim todos os dias e creio que ainda o faça. Nem posso avaliar o quanto sou devedor a Deus por esse fiel amigo e pastor.

c. O dom espiritual

Paulo deixa agora os meios indiretos usados por Deus para moldar o caráter cristão de Timóteo (seus pais e amigos) para enfocar um dom diretamente dado por Deus a ele. "Por esta razão, pois, te admoesto que reavives o dom de Deus, que há em ti pela imposição das minhas mãos" (v.6). Que dom (carisma) da graça de Deus foi este, não sabemos nem de leve, pelo simples fato de não nos ter sido revelado. Não temos a liberdade de ir além da Escritura. Contudo, podemos arriscar uma conjectura, desde que ressalvemos que se trata de apenas uma suposição. O que está claro, tanto neste ver­sículo como numa referência similar em 1 Timóteo 4: 14, é que o dom lhe fora conferido quando Paulo e certos "anciãos" (provavel­mente da igreja em Listra) lhe impuseram as mãos. Os dois versí­culos mencionam a imposição de mãos e parecem referir-se ao que podemos chamar de sua "ordenação" ou "comissionamento". Sen­do assim, então o dom em questão seria um dom que Deus lhe dera relacionado com o seu ministério. É possível também que Paulo esteja se referindo ao ministério em si, para o qual Timóteo fora separado, pela imposição de mãos. De fato, as funções de pastor e de mestre, tal como as de apóstolo e de profeta, são apontadas como dons da graça de Deus (Ef 4: 7-11). Desse modo, talvez Dean Alford tenha razão, ao dizer que "o dom espiritual é o de ensinar e o de presidir a igreja".[3] Ou então a referência pode ter sido ao dom de evangelização. Logo adiante Paulo insiste com Timóteo para que este faça o trabalho de evangelista, cumprindo assim o seu ministério (4: 5). Ou ainda, uma vez que o apóstolo prossegue imediatamente referindo-se à espécie de espírito que Deus nos deu (v.7), é possível que ele estivesse se referindo a uma dádiva ou unção especial do Espírito, que Timóteo recebera por ocasião de sua ordenação, e que o capacitaria à obra para a qual fora chamado. Minha opinião pessoal é que é mais seguro descre­ver o carisma de Timóteo com as palavras de Alfred Plummer: "a autoridade e o poder para ser um ministro de Cristo".[4] Isto inclui tanto a função como o equipamento espiritual necessário para desempenhá-la.

Aprendemos, pois, que o homem não é somente o que ele rece­be de seus pais, amigos e mestres, mas também o que Deus mesmo faz dele, quando o chama para um ministério especial, dotando-o com recursos espirituais apropriados.

d. A disciplina pessoal

De fato, os dons de Deus, tanto os naturais como os espirituais, precisam ser desenvolvidos e usados. As parábolas dos talentos e das minas, que nosso Senhor ensinou, ilustram claramente a res­ponsabilidade pelo serviço, a recompensa pela fidelidade e o peri­go da preguiça. Assim, na sua primeira carta, Paulo pede que Timó­teo não se faça negligente com o seu dom (4: 14) e na segunda car­ta o admoesta a reavivá-lo (v.6), ou reacendê-lo. O dom é compa­rado ao fogo.  Do verbo grego anazöpureö, que não aparece em nenhuma outra passagem do Novo Testamento, não se pode deduzir que Timóteo tenha deixado o fogo extinguir-se e que tenha agora de soprar as brasas quase apagadas, até que o fogo ressurja. O pre­fixo ana pode indicar tanto aumentar o fogo como tornar a acen­dê-lo. Parece, pois, que a exortação de Paulo é para continuar so­prando, para "atiçar aquele fogo interior", para conservá-lo vivo, até inflamar-se, e isso presumivelmente pelo exercício fiel do seu dom e pela súplica a Deus por constante renovação desse dom.

Lançando este apelo, Paulo imediatamente justifica: "porque Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação" (v.7). Já consideramos anteriormente os problemas da mocidade, da saúde debilitada e do temperamento tímido contra os quais Timóteo teria que lutar. Ele parece ter sido uma criatura muito arredia e sensível, a quem a responsabili­dade se configurava como uma carga pesada. Talvez temesse ex­cessos e extravagâncias espirituais. Assim, Paulo é compelido a não somente insistir com ele para conservar ativo o seu dom, mas também a certificá-lo de que ele não devia ser acanhado no exer­cício do mesmo.

Por que não? Bem, porque "covardia não tem nada a ver com o Cristianismo",[5] ou, como Paulo o diz, por causa do Espírito que Deus nos deu. Note-se que, ainda que um certo dom espiritual específico tenha sido dado a Timóteo ("que há em ti"), o dom do Espírito em si foi dado a todos nós ("Deus... nos tem dado") a to­dos os que estamos em Cristo. E este Espírito, que Deus deu a todos nós, não é um Espírito de "covardia", mas de "poder, de amor e de moderação". Sendo ele o Espírito de poder, podemos estar confiantes de que ele nos capacita no exercício do nosso ministério. Sendo ele o Espírito de amor, devemos usar a autori­dade e o poder de Deus a serviço do próximo, não em auto-afir­mação ou vanglória. E sendo ele o Espírito de domínio próprio, este uso deve ser com visível reverência e reserva.

Até aqui estudamos o que os primeiros sete versículos da carta nos transmitem a respeito desses dois homens, Paulo e Timóteo, e de suas qualidades essenciais. Paulo sustenta ser apóstolo de Jesus Cristo "pela vontade de Deus", como dissera antes ser o que ele era "pela graça de Deus" (1 Co 15: 10). E uma série de fato­res levou Timóteo a ser o que era: foi criado no temor de Deus, a amizade e o treinamento de Paulo, o dom de Deus, e a sua autodisciplina em desenvolvê-lo.

Em princípio, acontece o mesmo com todo o povo de Deus. Talvez a coisa mais impressionante seja a combinação, tanto em Paulo como em Timóteo, da soberania divina com a responsabili­dade humana. São duas realidades, de revelação e de experiência, que consideramos difícil subsistirem ao mesmo tempo, e impos­sível serem sistematizadas numa acurada doutrina.

Paulo podia escrever sobre a vontade de Deus e assegurar que a graça divina fizera dele o que ele era. Mas Paulo imediatamente acrescentou: "e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus comigo" (1 Co 15: 10). Ou seja, ele acres­centou o seu esforço à graça de Deus; contudo, na verdade, foi a graça de Deus que inspirou o seu esforço.

Com Timóteo acontecia o mesmo. Sua mãe e sua avó puderam ensinar-lhe as Escrituras e levá-lo à conversão. Foi Paulo que o le­vou a Cristo, tornou-se seu amigo, orou por ele, escreveu-lhe, trei­nou-o e exortou-o. Timóteo recebeu de Deus um dom especial, em sua ordenação. Mas o próprio Timóteo teve que desenvolver sozinho o dom divino, sem Paulo. Ele teve de acrescentar a sua própria autodisciplina aos dons de Deus.

Conosco não se dá de forma diferente. O muito ou o pouco que tenhamos recebido de Deus, seja diretamente numa doação natural e espiritual, seja indiretamente através de pais, amigos ou professores, de qualquer modo devemos aplicar-nos numa ativa autodisciplina para cooperar com a graça de Deus e para conservar bem aceso o fogo interior. De outra forma, jamais seremos os homens e as mulheres que Deus quer que sejamos; jamais cumpri­remos o ministério que ele nos deu para exercermos.

Paulo deixa, agora, os vários fatores que contribuíram para a formação de Timóteo e volta-se para a autenticidade do evange­lho e para a responsabilidade de Timóteo em relação ao mesmo. Antes de definir o evangelho, ele roga o Timóteo que não se en­vergonhe do mesmo (v.8). O ministério de Timóteo deveria ser caracterizado pelo sofrimento e não pela vergonha. Ele poderia ser jovem, débil, tímido e fraco;   também poderia recuar diante das tarefas para as quais estava sendo chamado. Mas Deus o mol­dou e o dotou para seu ministério, de modo que Timóteo não deveria envergonhar-se desse ministério, nem temer exercê-lo.

Isto significa, antes de tudo, que Timóteo não deveria enver­gonhar-se de Cristo, "do testemunho de nosso Senhor". Cada cristão é uma testemunha de Cristo, e o testemunho cristão é es­sencialmente um testemunho tanto para Cristo, como de Cristo (cf. Jo 15: 26-27; At 1: 8). Assim, cada cristão deve estar pron­to e desejoso, se necessário, a fazer-se "um louco, por causa de Cristo" (1 Co 4: 10); por ninguém mais se diz que alguém deva se dispor a passar por um louco!

Não tendo Timóteo que se envergonhar do Senhor, também não tinha que se envergonhar de Paulo. Porque é possível orgu­lhar-se de Cristo, mas envergonhar-se do seu povo e sentir-se per­turbado por se associar a ele. Parece que quando Paulo foi pre­so novamente e posto em cadeias, quase: todos os seus antigos auxiliares o abandonaram (v.15). Agora ele implora a Timóteo não lhes seguir o exemplo. Aos olhos dos homens, ele talvez seja prisioneiro do imperador; na realidade, porém, é prisioneiro do Senhor, um prisioneiro voluntário, mantido pelos homens em prisão somente com a permissão de Cristo e pela causa de Cris­to.[6]
Timóteo não deve, portanto, envergonhar-se do evangelho, mas tomar parte no sofrimento por ele. Sendo fraco em si mesmo, poderia ser fortalecido pelo poder de Deus, para assim suportar os sofrimentos. E isso era necessário, pois o evangelho de Cristo crucificado, loucura para alguns e pedra de tropeço para outros (1 Co 1: 23), sempre despertou oposição. E opondo-se à mensa­gem, as pessoas se colocam obviamente contra os mensageiros que, deste modo, "sofrem com o evangelho do sofrimento".[7]

Estes continuam ainda sendo os três modos mais importantes pelos quais os cristãos, como Timóteo, são tentados a envergonhar-se: ora do nome de Cristo, do qual somos chamados a dar testemunho; ora do povo de Cristo, ao qual também pertence­mos, se é que pertencemos a Ele; ora do evangelho de Cristo, cuja propagação nos foi confiada.

A tentação é forte e insidiosa. Se Timóteo não a sentisse, Paulo não o exortaria nestes termos. Se o próprio Paulo nunca tivesse se sentido exposto a ela, não teria tido que se expressar, alguns anos antes, com tanta veemência: "Não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê" (Rm 1: 16). Com efeito, se esta não fosse uma tentação corriqueira, o Senhor Jesus não teria necessidade de advertir sole­nemente: "Porque qualquer que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim. e das minhas palavras, também o Fi­lho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos" (Mc 8: 38). Todos nós somos muito mais sensíveis à opinião pública do que pensamos, e tendemos a dobrar-nos facilmente às pressões dela, tal como palmeiras agita­das pelo vento.

Paulo agora fala mais detalhadamente sobre o evangelho do qual Timóteo não deve se envergonhar, e pelo qual deve se dis­por também a sofrer. Ele começa citando as características mais importantes (vs. 9, 10) e depois resume a nossa responsabilidade em relação ao evangelho (vs. 11, 18). Este é então o duplo tema do restante do capítulo: o evangelho de Deus e o nosso dever para com ele.



[1] Calvino, p. 292. Cf. p. 242 de um comentário similar sobre 1 Tm 4: 6.
[2] Moule, pp. 40 e 45.
[3] Alford, p. 342, um comentário sobre 1 Tm 4:14.
[4] Plummer, p. 314.
[5] Bairett, p. 94
[6] Na sua prisão domiciliar anterior, em Roma, Paulo cognominara-se um (ou o) prisioneiro de Cristo Jesus em Ef 3: 1 e Fm 1: 9. Aqui ele é "o seu encarcerado," enquanto que em Ef 4: 1 a expressão usada foi "o prisioneiro no Senhor" (en kuriö), dando a entender, talvez, que fora preso por causa de sua união com Cristo.
[7] Moule,pp. 45, 72.


continua no próximo