3. O Evangelho de Deus (vs. 9,10)
. . . que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, 10e manifestada agora pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus, o qual não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho...
É notável ver Paulo passar, de repente, da referência ao "evangelho" à afirmação central: "Deus . . . nos salvou". É mesmo impossível falar do evangelho sem falar, ao mesmo tempo, da salvação. O evangelho é precisamente isto: boas novas de salvação, ou boas notícias de "nosso Salvador Cristo Jesus" (v.10). Desde o dia do Natal, quando a boa nova de alegria foi anunciada pela primeira vez, proclamando o nascimento do "Salvador que é Cristo o Senhor" (Lc 2: 10-11), os seguidores de Jesus têm reconhecido o seu conteúdo essencial. Paulo mesmo nunca vacilou a esse respeito. Em Antioquia da Pisídia, na primeira viagem missionária, ele refere-se ao seu evangelho como a "mensagem desta salvação". Em Filipos, na segunda jornada missionária, ele e seus companheiros foram identificados como "servos do Deus Altíssimo, que nos anunciam o caminho da salvação". E ao escrever em Roma aos Efésios, ele intitula a palavra da verdade de "o evangelho da vossa salvação" (At 13:26; 16:17; Ef 1:13).
Assim, aqui, ao escrever a respeito do evangelho, Paulo usa a terminologia costumeira, isto é, que somos salvos em Cristo Je sus por determinação, graça e chamado de Deus, não por nossas próprias obras. É que ele está expondo, nesta sua última carta, o mesmo evangelho que já expusera na sua primeira carta (Gaiatas). Com o passar dos anos, o seu evangelho não sofreu mudanças; há somente um evangelho de salvação. E conquanto devamos traduzir os termos "evangelho" e "salvação" por expressões mais compreensíveis ao homem moderno, não podemos alterar a substância da nossa mensagem. Examinando com mais cuidado a forma concisa com que Paulo apresenta o evangelho de Deus nestes versículos, constatamos que ele indica a sua essência (o que é o evangelho), a sua origem (de onde provém) e o seu fundamento (onde se baseia).
a. A essência da salvação
Precisamos juntar as três cláusulas que afirmam que Deus "nos salvou", "nos chamou com santa vocação" e "trouxe à luz a vida e a imortalidade". Isto explica que a salvação vai muito além do perdão. O Deus que nos "salvou" é também o que, ao mesmo tempo, "nos chamou com santa vocação", ou seja, que nos "chamou para sermos santos". O chamamento cristão é uma vocação santa. Quando Deus chama alguém para si, também o chama à santidade. A isto Paulo dera muita ênfase em suas cartas anteriores. "Deus não nos chamou para a impureza, e, sim, em santificação", porque todos fomos "chamados para ser santos", chamados para viver como povo santo de Deus e separado para ele (1 Ts 4:7; 1 Co 1: 2). Sendo a santidade uma parte integrante no plano de Deus para a salvação, também o é a "imortalidade", da qual escreve no versículo seguinte (v.10). De fato, "perdão", "santidade" e "imortalidade" são três aspectos da grande "salvação" de Deus.
O termo "salvação" precisa ser urgentemente libertado do conceito medíocre e pobre com o qual tendemos a degradá-lo. "Salvação" é um termo majestoso, que evidencia todo o amplo propósito de Deus, pelo qual ele justifica, santifica e glorifica o seu povo: primeiramente, perdoando as nossas ofensas e aceitando-nos como justos ao nos olhar através de Cristo; depois transformando-nos progressivamente, pelo seu Espírito, para sermos conforme a imagem do seu Filho, até que finalmente nos tornemos iguais a Cristo no céu, com novos corpos, num mundo novo. Não devemos minimizar a grandeza de "tão grande salvação" (Hb 2:3).
b. A origem da salvação
De onde provém tão grande salvação? A resposta de Paulo é: "Não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos" (v.9). Se quiséssemos acompanhar o manancial da salvação até a sua origem, deveríamos então voltar para trás, através do tempo, em direção à eternidade do passado. As palavras do apóstolo são mesmo: "antes dos tempos eternos"[1] e são traduzidas de diversas formas: "antes do princípio do mundo" (BV), "antes do tempo existir" (CIN), ou "antes de todos os séculos" (PAPF).
Para não pairar qualquer dúvida sobre a verdade de que a predestinação e eleição por Deus pertence à eternidade e não ao tempo, Paulo faz uso de um particípio aorístico para indicar que Deus de fato nos deu algo (dotheisan) desde toda a eternidade, em Cristo. O que Deus nos deu foi "a sua própria determinação e graça", ou "a sua determinação, ou propósito, de nos dar graça". A sua determinação de dar a salvação não era arbitrária, mas sim fundada em sua graça.[2] Fica claro, por conseguinte, que a fonte de nossa salvação não são as nossas próprias obras, visto que Deus nos deu a sua própria determinação da graça em Cristo antes que praticássemos quaisquer boas obras, antes de termos nascido e de termos podido fazer quaisquer obras meritórias; antes mesmo da História, antes do tempo, na eternidade.
Temos que confessar que a doutrina da eleição é matéria difícil para mentes finitas mas é, incontestavelmente, uma doutrina bíblica. Ela enfatiza que a salvação é devida exclusivamente à graça de Deus, e não aos méritos humanos; não às nossas obras realizadas no tempo, mas à determinação que Deus concebeu na eternidade; "aquela determinação", como se expressa o Rev. Ellicott, "que não surgiu de algo fora dele, mas que brotou unicamente das maiores profundezas da divina eudokia".[3] Ou, nas palavras de E. K. Srmpson: "As escolhas do Senhor têm as suas razões imperscrutáveis, mas não se baseiam na elegibilidade dos escolhidos".[4] Assim sendo, a divina determinação, ou propósito, da eleição é um mistério para a mente humana, já que não se pode aspirar compreender os pensamentos secretos e as decisões da mente de Deus. Contudo, a doutrina da eleição nunca é introduzida na Escritura para despertar ou para diminuir a nossa curiosidade carnal, mas sempre tendo um propósito bem prático. De um lado ela desperta uma profunda humildade e gratidão, por excluir todo o orgulho próprio. De outro lado, traz paz e segurança, porque nada pode acalmar os nossos temores pela nossa própria estabilidade como o conhecimento de que a nossa segurança depende, em última análise, não de nós mesmos, mas da própria determinação e graça de Deus.
c. O fundamento da salvação
A nossa salvação tem um firme fundamento na obra histórica efetuada por Jesus Cristo no seu primeiro aparecimento. Porque, conquanto a graça de Deus nos tenha sido "dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos", ela foi "manifestada agora", no tempo, "pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus", ou seja, pelo aparecimento do mesmo Jesus Cristo. Os dois estágios divinos foram em e através de Jesus Cristo; a dádiva foi eterna e secreta, mas a manifestação foi histórica e pública.
O que então Cristo realizou, ao aparecer e manifestar a eterna determinação e graça de Deus? A isto Paulo dá uma dupla resposta no versículo 10. Primeiramente, Cristo "destruiu a morte". Em segundo lugar, "trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho".
Em primeiro lugar, Cristo destruiu a morte.
"Morte" é, de fato, a palavra que bem sintetiza a nossa condição humana resultante do pecado. Porque a morte é o "salário" do pecado, é a sua horrível punição (Rm 6: 23). E é assim para cada uma das formas que a morte assume. A Escritura fala da morte em três sentidos: a morte física, a alma separada do corpo; a morte espiritual, a alma separada de Deus; e a morte eterna, a alma e o corpo separados de Deus para sempre. Todas as três mortes são devidas ao pecado; são a sua terrível, porém justa, recompensa. Mas Jesus "destruiu" a morte. O sentido não pode ser o de que ele já a tenha eliminado, conforme sabemos por nossa própria experiência diária. Os pecadores ainda estão "mortos em delitos e pecados", nos quais andam (Ef 2: 1-2), até que Deus lhes dê a vida em Cristo. Todos os seres humanos morrem fisicamente e continuarão a morrer, com exceção da geração que estiver viva quando Cristo retornar em glória. E muitos experimentarão a "segunda morte", que é uma das apavorantes expressões usadas no livro do Apocalipse para designar o inferno (p. ex.: Ap. 20: 14; 21:8). Com efeito, anteriormente Paulo escrevera que a destruição final da morte ainda se encontra no futuro, quando ela, o último inimigo de Deus, será destruída (1 Co 15: 26). Só depois da volta de Cristo e da ressurreição dos mortos é que haveremos de proclamar com júbilo: "tragada foi a morte pela vitória" (1 Co 15:54;cf.Ap21:4).
O que Paulo afirma, triunfantemente, neste versículo, é que, em seu primeiro aparecimento, Cristo decisivamente derrotou a morte. O verbo grego katargeö não permite, por si mesmo, concluirmos qual seja o seu significado, pois pode ser empregado com muitos sentidos, e assim só o contexto pode determinar qual o seu correto significado. Contudo, o seu primeiro e mais notável sentido é o de "tornar ineficiente, sem poder, inútil" ou "anular" (AG). Assim Paulo compara a morte a um escorpião, do qual se arrancou o ferrão; e também a um comandante, cujas tropas foram vencidas. O apóstolo pode, portanto, levantar a sua voz em desafio: "Onde está, ó morte, a tua vitória? onde está, ó morte, o teu aguilhão?" (1 Co 15: 55). Porque Cristo destruiu o poder da morte (AG).
É muito significativo que este mesmo verbo katargeö é usado no Novo Testamento com referência ao diabo e à nossa natureza decaída, assim como o é também com referência à morte (Hb 2: 14; Rm 6: 6). Nem o diabo, nem a nossa natureza decaída e tampouco a morte foram aniquilados; mas pelo poder de Cristo, a tirania de cada um deles foi destruída, de forma que os que estão em Cristo estão em liberdade.
Consideremos particularmente como foi que Cristo "destruiu" ou "anulou" a morte. X A morte física já não é mais o terrível monstro que nos parecia antes, e que continua ainda sendo para muitos, a quem Cristo ainda não libertou. Pelo pavor da morte eles ainda estão "sujeitos à escravidão por toda a vida" (Hb 2: 15). Já para os crentes em Cristo a morte significa simplesmente "dormir" em Cristo; e isto é, na verdade, um "lucro", por ser o caminho para estar "com Cristo, o que é incomparavelmente melhor". É um dos bens que se tornam nossos, quando somos de Cristo (1 Ts 4:14-15; Fp 1:21-23; 1 Co 3: 22-23). A morte tornou-se tão inofensiva, que Jesus chegou a afirmar que o crente, ainda que morra, "não morrerá, eternamente" (Jo 11: 25-26). O que é absolutamente certo é que a morte jamais conseguirá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo (Rm 8:38-39).
A morte espiritual, para os cristãos, deu lugar à vida eterna, que é a comunhão com Deus, iniciada aqui na terra e que será perfeita no céu. Além disso, os que estão em Cristo "de nenhum modo sofrerão os danos da segunda morte", porque já passaram da morte para a vida (Ap 2:11; Jo 5:24; e 1 Jo3:14).
Em segundo lugar, Cristo "trouxe à luz a vida e a imortalidade mediante o evangelho". Esta é a contrapartida positiva. Foi por meio de sua morte e ressurreição que Cristo destruiu a morte. É através do evangelho que ele agora revela o que fez, e oferece aos homens a vida e a imortalidade que para eles conquistou. Não está claro se devemos fazer distinção entre as palavras "vida" e "imortalidade", pois podem ser sinônimas, a segunda definindo a primeira. Ou seja, a espécie de vida que Cristo nos garantiu, e que agora nos revela e nos oferece através do evangelho, é a vida eterna, uma vida que é imortal e incorruptível. Somente Deus possui a imortalidade em si mesmo, mas Cristo a dá aos homens. Até mesmo os nossos corpos participarão dessa imortalidade, após a ressurreição (1 Co 15: 42, 52-54). Assim será a herança que receberemos (1 Pe 1:4). De outro lado, como C. K. Barrett escreve: "possivelmente 'vida' refira-se à nova vida, possível de ser obtida neste mundo; e 'imortalidade' ao seu prolongamento depois da morte".[5] Qualquer que seja a nossa conceituação dessas palavras, ambas são "reveladas" ou "trazidas à luz" através do evangelho. Há muitas alusões no Velho Testamento a uma vida após a morte, e alguns lampejos dessa fé, mas de maneira geral a revelação do Antigo Testamento é o que o Rev. Moule chamou de "um lusco-fusco",[6] em comparação com o Novo Testamento. O evangelho, contudo, trouxe torrentes de luz sobre a dádiva da vida e da imortalidade, através da vitória de Cristo sobre a morte.
A fim de apreciarmos a plena força desta afirmativa cristã, precisamos relembrar quem é este que a está proferindo. Quem é este que escreve com tanta segurança sobre a vida e a morte, sobre a destruição da morte e a revelação da vida? É alguém que encara a iminente expectativa da sua própria morte. A qualquer hora ele espera receber a sua sentença de morte. Já soa em seus ouvidos a sua ultimação final. Em sua imaginação já pode ver o lampejar da espada do carrasco. E, não obstante, na dura presença da morte, ele brada alto: "Cristo destruiu a morte". Isto é fé cristã triunfante!
Como suspiramos e anelamos que a igreja de nossos dias recupere a sua esperança na vitória de Jesus Cristo, que proclame estas boas novas a este mundo, para o qual morte continua sendo uma palavra proibida. A revista "The Observer" dedicou uma edição inteira ao tema "morte", em outubro de 1968, e comentou: "Longe de estar preparada para a morte, a sociedade moderna conferiu a esta palavra o caráter de coisa não mencionável. . . aplicamos todos os nossos talentos para nos esquivar da expectativa de morrer e, quando a hora chega, reagimos de qualquer forma, ou com excessiva trivialidade, ou até com total desespero".
Um dos testes mais reveladores que se pode aplicar a qualquer religião diz respeito à atitude da mesma em relação à morte. Avaliada por este teste, muito "cristianismo" por aí é achado em falta, com suas roupagens pretas, e com seus cânticos plangentes e suas missas de réquiem. É claro que morrer pode ser muito desagradável e a perda de um ente amado pode trazer amarga tristeza. Mas a própria morte foi derrotada, e "bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor" (Ap 14: 13). O epitáfio adequado para um crente em Cristo não é a lúgubre e incerta petição, requiescat in pace (descanse em paz), mas a firme e jubilosa afirmação: "Cristo venceu a morte", ou para quem prefira línguas clássicas, o equivalente a isso em grego ou latim!
Tal é, pois, a salvação que nos é oferecida pelo evangelho, da qual nos apropriamos em Cristo. Caracteriza-se pela recriação e transformação do homem na santidade de Cristo, aqui e além. A origem desta salvação é o eterno propósito da graça de Deus. O seu fundamento é o aparecimento histórico de Cristo e a destruição da morte por ele.
Juntando estas grandes verdades, podemos encontrar cinco etapas que caracterizam o propósito salvífico de Deus. A primeira é o dom eterno da sua graça, que nos é oferecido em Cristo. A segunda é o aparecimento histórico de Cristo para destruir a morte através da sua morte e ressurreição. A terceira etapa é o convite pessoal que Deus faz ao pecador, por meio da pregação do evangelho. A quarta é a santificação moral dos crentes pelo Espírito Santo. E a quinta etapa é a perfeição celestial final, na qual o santo chamamento é consumado.
A extensão do propósito da graça de Deus é realmente sublime, tal como Paulo o delineia, partindo da eternidade passada, passando pela sua realização histórica em Jesus Cristo , e culminando no cristão, que tem o seu destino final com Cristo e à semelhança de Cristo, numa futura imortalidade. Não é realmente maravilhoso que, mesmo estando o corpo de Paulo confinado ao espaço apertado de uma cela subterrânea, o seu coração e a sua mente possam elevar-se até a eternidade?
4. Nossa responsabilidade perante o evangelho divino (vs. 11-18)
Para o qual eu fui designado pregador, apóstolo e mestre, 12 e por isso estou sofrendo estas coisas, todavia não me envergonho; porque sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia. 13Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. 14Guarda o bom depósito, mediante o Espirito Santo que habita em nós. 15Estás ciente de que todos os da Ásia me abandonaram; dentre eles cito Figelo e Hermógenes. 16Conceda o Senhor misericórdia à casa de Onesíforo, porque muitas vezes me deu ânimo e nunca se envergonhou das minhas algemas. 17Antes, tendo ele chegado a Roma, me procurou solicitamente até me encontrar. 18O Senhor lhe conceda, naquele dia, achar misericórdia da parte do Senhor. E tu sabes, melhor do que eu, quantos serviços me prestou ele em Éfeso.
Se perguntássemos a Paulo qual é a primeira responsabilidade de alguém em relação ao evangelho, ele responderia, sem dúvida, que é receber a boa nova e vivê-la. Mas o seu interesse aqui não se refere à responsabilidade do incrédulo, mas à do cristão perante o evangelho, depois de o ter abraçado. Paulo dá três respostas a esta pergunta:
a. Nossa responsabilidade de comunicar o evangelho (v. 11)
Se "a vida e a imortalidade" que Cristo conquistou são trazidas à luz "mediante o evangelho", então, naturalmente, é imperativo que proclamemos o evangelho. Assim Paulo continua: "para o qual (evangelho) eu fui designado pregador, apóstolo e mestre". A mesma combinação de palavras ocorre em 1 Timóteo 2: 7, e nas duas passagens Paulo usa o ego enfático, sem dúvida para expressar a sua "sensação de surpresa consigo mesmo"[7] por lhe ter sido conferido tamanho privilégio.
Talvez possamos nos referir às três funções de "apóstolo", "pregador" e "mestre", dizendo que os apóstolos formularam o evangelho, os pregadores o proclamam como arautos, e os mestres são os que instruem de forma sistemática acerca de suas doutrinas e das implicações éticas decorrentes.
Hoje não há mais apóstolos de Cristo. Já vimos anteriormente o quanto é restrito, no Novo Testamento, o uso deste termo. O evangelho foi formulado pelos apóstolos e por eles legado à Igreja. Acha-se em sua forma definitiva registrado no Novo Testamento. Esta fé apostólica neotestamentária é normativa para a Igreja de todos os tempos e lugares. A Igreja está edificada "sobre o fundamento dos apóstolos e profetas" (Ef 2: 20). Não há outro evangelho. Não pode haver nenhum outro evangelho.
Embora não haja apóstolos de Cristo em nossos dias, certamente há pregadores e mestres, homens e mulheres chamados por Deus para se consagrarem à obra da pregação e do ensino. Notemos que eles são chamados para pregar e para ensinar o evangelho. É muito ao gosto de círculos teológicos fazer uma clara distinção entre o kërygma (a pregação) e o didache (o ensino). Ao kerygma corresponde essencialmente a boa nova de Cristo crucificado e ressurreto, com o apelo ao arrependimento e à fé; no didache corresponde principalmente a instrução ética aos convertidos. Esta distinção pode ser útil, mas é perigosa. Ela é benéfica somente se nos lembrarmos de que os dois de entrelaçam. Havia muito de didache no kërygma e muito de kerygma no didachê. Além do mais, ambos concernem ao evangelho, sendo que o kèrygma era a proclamação de sua essência, enquanto que o didache incluía as grandes doutrinas que o sustentam, assim como a conduta moral dele decorrente.
A referência a "testemunho", no versículo 8, que já consideramos anteriormente, acrescenta um quarto termo a esta lista. Ele nos lembra que, embora não haja apóstolos hoje, e apesar de somente alguns serem chamados ao ministério da pregação e do ensino, cada crente em Cristo deve testemunhar de Jesus Cristo a partir de sua experiência pessoal.
b. Nossa responsabilidade de sofrer pelo evangelho (v. 12a)
Paulo havia ordenado a Timóteo que não se envergonhasse, mas que assumisse a sua parte de sofrimento pelo evangelho (v.8), tema este a que se dedicou no segundo capítulo desta carta. Mas agora ele enfatiza que não está exigindo de Timóteo algo que ele mesmo, Paulo, não estava preparado para suportar: ". . . por cuja causa padeço. . ., mas não me envergonho...". Qual a razão para este relacionamento entre o sofrimento é o evangelho? Que há com o evangelho, que os homens odeiam e a ele se opõem, e que por sua causa os que o pregam têm de sofrer?
Dá-se o seguinte: os pecadores suo salvos por Deus em virtude da própria determinação e graça divina, e não em virtude das boas obras deles (v.9). O que ofende as pessoas é a imerecida gratuidade do evangelho. O homem "natural" ou não regenerado odeia ter de admitir a gravidade do seu pecado e culpa, a necessidade da graça de Deus e a morte expiatória de Cristo para salvá-lo, e conseqüentemente a sua inegável dívida para com a cruz. É isto que Paulo entendeu por "pedra de tropeço da cruz". Muitos pregadores sucumbem à tentação do silêncio com respeito a esse aspecto. Pregam o mérito dos homens em vez de Cristo e sua cruz, e substituem um pelo outro, "somente para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo" (Gl 6: 12; cf. 5:11). Ninguém consegue pregar com fidelidade o Cristo crucificado sem sofrer oposição, ou até mesmo perseguição.
c. Nossa responsabilidade de zelar pelo evangelho (vs. 12b-18)
Deixando de lado, por enquanto, a segunda parte do versículo 12, chegamos à dupla exortação de Paulo a Timóteo, nos dois versículos seguintes: "Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste" (v.13); "guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós" (v. 14). Aqui Paulo se refere ao evangelho, à fé apostólica, usando duas expressões. O evangelho é tanto um padrão de sãs palavras (v.13), como um depósito precioso (v.14).
"Sãs" palavras são palavras "saudáveis". A expressão grega é empregada nos evangelhos nos casos de pessoas curadas por Jesus. Anteriormente eram deformes ou doentes; agora estavam bem ou "sãs". Assim, a fé cristã é a "sã doutrina" (4: 3), que consiste de "palavras sãs", por não ser mutilada ou enferma, mas "sadia", ou "completa". É o que Paulo mencionara, anteriormente, como sendo "todo o desígnio de Deus" (At 20:27).
Além disso, essas "sãs palavras" foram dadas por Paulo a Timóteo num "padrão". A palavra grega aqui é hypotyposis. A BLH traduz por "exemplo". E o Dr. Guthrie diz que ela significa um "esboço rápido, como o faria um arquiteto, antes de lançar no papel os planos detalhados de uma construção."[8] Neste último cano Paulo estaria sugerindo a Timóteo que ampliasse, expusesse e tiplicasse o ensino apostólico. Parece-me que essa interpretação não se harmoniza com o contexto, principalmente num confronto com o versículo seguinte. A única outra ocorrência de hypotyposis no Novo Testamento encontra-se na primeira carta de Paulo a Timóteo, onde ele descreve a si mesmo como um objeto da maravilhosa misericórdia e da perfeita paciência de Cristo, como um "exemplo dos que haviam de crer nele" (1: 16). Arndt e Gingrich, que optaram por "modelo" ou "exemplo" como sendo a tradução usual, sugerem que essa palavra é empregada mais com o sentido de "protótipo" em 1 Timóteo 1: 16 e com o sentido de "padrão" em 2 Timóteo 1: 13. Neste caso Paulo estaria ordenando a Timóteo que se conservasse como um padrão de sãs palavras, isto é, "como um modelo de ensino sadio", aquilo que ouvira do apóstolo. Isto certamente corresponde ao ensino geral da carta e reflete fielmente a ênfase da sentença na primeira palavra, "modelo" ou "padrão".
Assim, o ensino de Paulo deve ser uma regra ou diretriz para Timóteo, da qual este não deve se afastar. Pelo contrário, deve obedecer a essa regra, ou melhor, deve apegar-se a ela com firmeza (eche). E assim deve proceder "na fé e no amor que há em Cristo Jesus". Isto é, Paulo não está tão preocupado com o que Timóteo deve fazer, mas sim com o modo como ele o fará. As convicções doutrinárias pessoais de Timóteo e a instrução recebida de outros, assim como as que reteve firmemente dos ensinos de Paulo, devem ser manifestadas com fé e amor. Timóteo deve procurar estas qualidades em Cristo: uma crença sincera e um amor pleno.
A fé apostólica não é somente um "padrão de sãs palavras"; é também o "bom depósito" (hë kalë parathtëkë). Ou como ex-pressa a BLH: "as boas coisas que foram entregues a você". Sim, o evangelho é um tesouro, depositado em custódia na igreja. Cristo o confiou a Paulo; e Paulo, por sua vez, o confiou a Timóteo.
Timóteo deveria "guardá-lo". É precisamente o mesmo apelo que Paulo lançou no final da sua primeira carta (6: 20), com a única diferença de que agora ele o chama de "bom", literalmente "belo" depósito. O verbo (phylassõj tem o sentido de guardar algo "para que não se perca ou se danifique" (AG). É empregado com a idéia de guardar um palácio contra saqueadores, e bens contra ladrões (Lc 11: 21; At 22: 20). Fora há hereges prontos a corromper o evangelho e desta forma roubar da igreja o inestimável tesouro que lhe foi confiado. Cabe a Timóteo colocar-se em guarda.
Deveria ele guardar o evangelho com toda a firmeza possível em vista do que acontecera em Éfeso (a capital da província romana da Ásia) e seus arredores, onde Timóteo se encontrava (v.15). O tempo aoristo do verbo "me abandonaram" parece referir-se a um acontecimento especial. É mais provável que tenha sido o momento da segunda detenção de Paulo. As igrejas da Ásia, onde trabalhara por vários anos, tornaram-se muito dependentes dele, e talvez a prisão do apóstolo lhes tenha incutido a idéia de que a fé cristã agora estava perdida. A reação deles talvez tenha sido repudiar Paulo ou recusar-se a reconhecê-lo. De Figelo e Hermógenes nada sabemos de concreto, mas a menção de seus nomes nos indica que possivelmente eles tenham sido os cabeças da oposição. De qualquer modo, Paulo via nesse afastamento das igrejas da Ásia mais do que uma simples deserção pessoal dele; era, sim, uma rejeição à autoridade apostólica. Deve ter-lhe sido algo bastante sério, principalmente porque alguns anos antes, durante a sua permanência em Éfeso por dois anos e meio, Lucas registra que "todos os habitantes da Ásia ouviram a palavra do Senhor, e muitos creram" (At 19: 10). Agora "os que estão na Ásia" haviam voltado as costas a Paulo. A um grande despertamento seguiu-se uma grande deserção. "A todos os olhos, menos aos da fé, deve ter parecido que o evangelho estava às vésperas da extinção".[9]
Uma grande exceção parece ter sido um homem chamado Onesíforo, o qual repetidas vezes acolhera Paulo em sua casa (literalmente "reanimou-o", v.16) e que, em Éfeso, prestara-lhe muitos serviços (v.18). Onesíforo permanecera, deste modo, fiel ao significado do seu nome: "portador de préstimos". Além disso, não se envorgonhara das algemas de Paulo (v.16), o que dá a entender que não repudiou a Paulo quando preso, e que o seguiu, e mesmo o acompanhou a Roma, procurando-o até encontrá-lo no calabouço. Paulo tinha boas razões para ser grato por este amigo fiel e corajoso. Não é surpreendente, pois, que se expresse por duas vezes em oração (vs. 16, 18), primeiro por sua casa ("conceda o Senhor misericórdia à casa de Onesíforo") e depois, especificamente, por Onesíforo ("O Senhor lhe conceda, naquele dia, achar misericórdia da parte do Senhor").
Vários comentaristas, notadamente católicos romanos, partindo das referências à casa de Onesíforo (mencionada novamente em 4: 19) e à expressão "naquele dia", têm argumentado que Onesíforo àquela altura estava morto e que, por conseguinte, no versículo 18 temos uma oração em favor de um falecido. Isto, na verdade, não passa de uma simples e gratuita conjectura. O fato de Paulo mencionar primeiro Onesíforo e depois sua casa não dá a entender necessariamente que estejam eles separados em virtude de sua morte; é mais viável crer que fosse devido à distância: Onesíforo estava ainda em Roma, enquanto que sua família permanecia em casa, em Éfeso. "Considero que é uma oração em separado pelo homem e por sua família", escreve o Rev. Moule, "por estarem então separados um do outro, por terras e mares . . . Não há necessidade alguma de interpretar que Onesíforo tivesse morrido. A separação de sua família, por uma viagem, isso é o que se depreende da passagem". [10]
Em todo o caso, todos na Ásia, como Timóteo estava bem ciente, voltaram as costas ao apóstolo, com exceção do leal Onesíforo e de sua família. Era em tal situação de apostasia quase universal que Timóteo deveria "guardar o bom depósito" e "manter o padrão das sãs palavras", ou seja, deveria preservar o evangelho imaculado e genuíno. Já seria uma grande responsabilidade para qualquer um, quanto mais para alguém com o temperamento de Timóteo. Como poderia então permanecer firme?
O apóstolo dá a Timóteo a base segura de que ele necessita. Timóteo não pode pensar em guardar o tesouro do evangelho com força própria; somente poderá fazê-lo "mediante o Espírito Santo que habita em nós (v.14). A mesma verdade é ensinada na segunda parte do versículo 12, que até aqui ainda não consideramos. A maior parte dos cristãos está familiarizada com a tradução "porque sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia". Estas palavras são verdadeiras e muitas outras passagens bíblicas as confirmam; quanto à estrutura lingüística, foram traduzidas acuradamente. De fato, tanto o verbo "guardar" como o substantivo "depósito" são precisamente as mesmas palavras no versículo 12 e no versículo 14 e ainda em 1 Timóteo 6: 20. Presume-se, então, que "o meu depósito" não é o que eu lhe confiei (minha alma ou eu mesmo, como em 1 Pedro 4: 19), mas aquilo que ele confiou a mim (o evangelho).
O sentido, pois, é este:Paulo podia dizer que o depósito é "meu", porque Cristo lho confiou. Contudo, Paulo estava persuadido de que era Cristo que iria conservá-lo seguro "até aquele dia", quando ele teria de prestar contas da sua mordomia. Em que se baseava a sua confiança? Somente numa coisa: "eu o conheço". Paulo conhecia a Cristo, em quem confiava, e estava convencido da capacidade dele para manter o depósito em segurança: "porque sei em quem tenho crido, e estou bem certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia" (v.12). Cristo o confiou a Paulo, é verdade, mas o próprio Cristo cuidará do depósito. E agora Paulo o está confiando a Timóteo. E Timóteo pode ter esta mesma segurança.
Aqui há um estímulo muito grande. Em última análise, é Deus mesmo quem preserva o evangelho. Ele se responsabiliza por sua conservação. "Sobre qualquer outro fundamento a obra da pregação não se sustentaria nem por um momento".[11] Podemos ver a fé evangélica encontrando oposição em toda parte, e a mensagem apostólica sendo ridicularizada. Talvez vejamos uma crescente apostasia crescer na igreja, muitos de nossa geração abandonando a fé de seus pais. Mas não temos nada a temer! Deus nunca permitirá que a luz do evangelho se apague. É verdade que ele o confiou a nós, frágeis e falíveis criaturas. Ele colocou o seu tesouro em frágeis vasos de barro, e nós devemos assumir a nossa parte na guarda e na defesa da verdade. Contudo, mesmo tendo entregue o depósito aos cuidados de nossas mãos, Deus não retirou as suas mãos desse depósito. Ele mesmo é, afinal, o seu melhor vigia; ele saberá preservar a verdade que confiou à Igreja. Isto nós sabemos, porque sabemos em quem depositamos a nossa confiança, e em quem continuamos a confiar.
[1] pro chronön aiöniön, A mesma expressão ocorre em Tt 1: 2, com referência à promessa de vida feita por Deus, cf. Rm 16:25.
[2] Veja Rm 8:28;9:11 e Ef 1:11 para outros exemplos da predestinação divina, "determinação" (prothesis) de salvação.
[3] Ellicott, p. 115; eudokia significa "grande prazer"
[4] Simpson,p. 125.
[5] Barrett, p. 95
[6] Moule, p. 50
[7] Guthrie, p. 73
[8] Guthrie, p. 132
[9] Moule, p. 16
[10] Moule, pp. 67, 68.
[11] Barrett, p. 97
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