segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O EVANGELHO MALTRAPILHO

O EVANGELHO MALTRAPILHO

Brennan Manning

A igreja evangélica dos nossos dias aceita a graça na teoria, mas nega-a na prática. Dizemos acreditar que a estrutura mais fundamental da realidade é a graça, não as obras. Mas nossa vida refuta a nossa fé.

De modo geral o evangelho da graça não é proclamado, nem compreendido, nem vivido. Um número grande demais de cristãos vive na casa do temor e não na casa do amor. Nossa cultura tornou a palavra graça impossível de compreender.

Repercutimos frases de efeito como:

  • Nesta vida nada é de graça;

  • Cada um acaba ganhando o que merece;

  • Quer dinheiro? Vá trabalhar;

  • Quer amor? Faça por merecer;

  • Quer misericórdia? Mostre que é digno dela;

  • Faça aos outros antes que lhe façam;

  • Observe as filas nos órgãos assistenciais, os mendigos preguiçosos nas ruas, a merenda grátis nas escolas, os estudantes ricos com bolsas do governo: só os trapaceiros se dão bem;

  • Sem dúvida, dê a cada um o que merece, e nem um centavo a mais.




Minha editora contou-me que ouviu certa vez um pastor dizendo a uma criança: “Deus ama os bons meninos”. À medida que ouço sermões com ênfase definida no esforço pessoal “toma lá, dá cá”, fico com a impressão que uma espiritualidade “faça-você-mesmo” é a nova onda americana.



Embora as Escrituras insistam que é de Deus a iniciativa na obra da salvação que “pela graça somos salvos”, freqüentemente nossa espiritualidade começa no eu, não em Deus. A responsabilidade pessoal substituiu a resposta pessoal. Falamos sobre adquirir a virtude como se ela fosse uma habilidade que pudesse ser desenvolvida, como uma bela caligrafia ou um bom gingado numa tacada de golfe. Nas épocas de penitência, nosso foco é superar nossas fraquezas, livrarmo-nos de nossos entraves e alcançarmos a maturidade cristã. Transpiramos debaixo de diversos exercícios espirituais como se eles fossem concebidos para produzir um Mister Universo cristão. Embora algum elogio nominal seja dirigido ao evangelho da graça, muitos cristãos vivem como se fossem apenas a sua disciplina pessoal e sua autonegação que deverão moldar o perfeito eu. A ênfase é no que eu estou fazendo em vez de no que Deus está fazendo. Nesse processo curioso, Deus é um espectador velhinho e benigno que está ali para torcer quando compareço para minha meditação matinal. Transferimos a lenda de Horatio Alger sobre o homem que venceu pelos seus próprios esforços, o self-made man, para nosso relacionamento com Deus.



Quando lemos no salmo 123: “Como os olhos dos servos estão fitos nas mãos dos seus senhores, e os olhos da serva, na mão de sua senhora”, experimentamos uma vaga sensação de culpa existencial. Nossos olhos não estão fitos em Deus. No fundo somos pelagianos praticantes. Cremos que somos capazes de nos erguermos do chão puxando nossos próprios cadarços . que somos, de fato, capazes de fazê-lo sozinhos. Mais cedo ou mais tarde somos confrontados com a dolorosa verdade da nossa inadequação e da nossa insuficiência. Nossa segurança é esmagada e nossos cadarços, cortados.



A palavra graça, em si, tornou-se banal e desgastada pelo mau uso e pelo uso em excesso. Ela não mexe conosco da mesma forma que mexia com nossos ancestrais cristãos. Em alguns países europeus, certos oficiais eclesiásticos de alto escalão são ainda chamados de “Sua Graça”, Jornalistas esportivos falam da ”graça fluente” de Michael Jordan, e já foi dito do empreendedor Donald Trump que ele “carece de graça”. Surge um novo perfume com o rótulo “Graça”, e um boletim de estudante é chamado de “desgraça”. A palavra perdeu o seu poder criativo latente.



Fyodor Dostoievski capturou o choque e o escândalo do evangelho da graça quando escreveu: No último julgamento Cristo nos dirá: Vinde, vós também! Vinde, bêbados! Vinde, vacilantes! Vinde, filhos do opróbrio! E dir-nos-á: Seres vis, vós que sois à imagem da besta e trazem a sua marca, vinde porém da mesma forma, vós também!. E os sábios e prudentes dirão: Senhor, por que os acolhes? E ele dirá: Se os acolho, homens sábios, se os acolho, homens prudentes, é porque nenhum deles foi jamais julgado digno. E ele estenderá os seus braços, e cairemos a seus pés, e choraremos e soluçaremos, e então compreenderemos tudo, compreenderemos o evangelho da graça! Senhor, venha o teu reino!”



Creio que a Reforma realmente começou no dia em que Martinho Lutero orou sobre o significado das palavras de Paulo em Romanos 1:17: “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé.” Como muitos cristãos dos nossos dias, Lutero se debatia noite adentro com a questão fundamental: de que forma o evangelho de Cristo podia ser realmente chamado de Boa Nova, se Deus é um juiz justo que retribui aos bons e pune os perversos? Será que Jesus veio realmente revelar essa terrível mensagem? De que forma a revelação de Deus em Cristo Jesus podia ser acuradamente chamada de “Nova”, já que o Antigo Testamento defendia o mesmo tema, ou de “Boa”, com a ameaça de punição suspensa como uma nuvem escura sobre o vale da história?



Eis aqui uma revelação fulgurante como a estrela da manhã: Jesus veio para os pecadores, para aqueles tão marginalizados quanto cobradores de impostos e para os enredados em escolhas sórdidas e sonhos desfeitos. Ele vem para executivos de corporações, sem-teto, superastros, fazendeiros, prostitutas, viciados, fiscais do Imposto de Renda, vítimas da AIDS e até mesmo vendedores de carros usados. Jesus não apenas conversa com essa gente, mas janta com eles, plenamente consciente de que sua comunhão à mesa com pecadores fará erguer as sobrancelhas dos burocratas religiosos que ostentam seus paramentos e a insígnia da sua autoridade para justificar a sua condenação à verdade e sua rejeição ao evangelho da graça.



(...)



A Boa Nova significa que podemos parar de mentir a nós mesmos. O doce som da graça admirável nos salva da necessidade do auto-engano. Ele nos impede de negar que, embora Cristo tenha sido vitorioso, a batalha contra a lascívia, a cobiça e o orgulho ainda ecoa dentro de nós. Na condição de pecador redimido, posso reconhecer com qual freqüência sou insensível, irritável, exasperado e rancoroso com os que me são mais próximos. Quando vou à igreja, posso deixar meu chapéu branco em casa e admitir que falhei. Deus não apenas me ama como eu sou, mas também me conhece como sou. Por causa disso não preciso aplicar maquiagem espiritual para fazer-me aceitável diante dele. Posso reconhecer a posse de minha miséria, impotência e carência.



(...)



Desejamos uma espiritualidade permanentemente vigorosa, espiritualidade de caixa automática, e tentamos cultivar determinada virtude em determinado momento do tempo. Prudência em janeiro, humildade em fevereiro, bravura em março, temperança em abril. Provemos fichas de desempenho para avaliar ganhos e perdas. As perdas podem ser minimizadas se você contribuir para obras de caridade em maio. Algumas vezes maio nunca chega. Para muitos cristãos, a vida é um longo janeiro.



(...)

E para finalizar...

A voz então diz: “[Eles] lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro”. Ali estão eles. Ali estamos nós, a multidão que queria ser fiel, que foi por vezes derrotada, maculada pela vida e vencida pelas provações, trajando as roupas ensangüentadas pelas tribulações da vida, mas, diante de tudo isso, permaneceu apegada à fé.

Meus amigos, se isso não lhes parece boa nova, vocês nunca chegaram a compreender o evangelho da graça.

Brennan Manning é o autor de O evangelho maltrapilho, A sabedoria da ternura e outras obras já publicadas no Brasil.

O que é um maltrapilho?
Bem, o Antigo Testamento apresenta uma bela cena sobre os Anawims. No século 18, eles são os pobres, desabrigados e sem-terras; Deus um dia restaurará a prosperidade deles. No século 6, porém, os Anawims adquiriram um sentido de imensa profundidade espiritual. Eram os pobres de espírito, que tinham confiança inabalável em Deus e se comprometeram por completo a fazer a vontade dele.
Agora, quando o tema chega ao Novo Testamento, os Anawims são os que se reúnem para conhecer Jesus em seu nascimento. São os pobres, desconhecidos, as pessoas à margem da respeitabilidade. São os pastores. Lá está Ana, uma senhora de 84 anos, e Simeão, um idoso. E todos os animais. E lá está, claro, a Virgem Maria, que fora considerada a última e a inferior em uma longa linhagem. Esses são os verdadeiros pobres de espírito. Eles reconhecem que dependem completamente de Deus, até mesmo para respirar, lançaram sua esperança sobre Jesus e se renderam à vontade do Pai. Isso, basicamente, é a definição de um maltrapilho.


Fale-nos de sua premissa sobre a confiança do crente em Deus.
A idéia básica se resume em uma sentença: O esplendor do coração humano que confia e é amado incondicionalmente dá a Deus mais prazer do que a Catedral de Westminster, a Capela Sistina, a Nona Sinfonia de Beethoven, os Girassóis de Van Gogh, a visão de dez mil borboletas em revoada ou o perfume de um milhão de orquídeas em flor. Confiança é o presente de retribuição que damos a Deus, que gosta tanto do presente que levou Jesus a morrer por amor a ele.

Foi isso que Jesus disse que precisamos trazer para o relacionamento?
Sim. Confiança e entrega como de uma criança, creio eu, é a definição do discipulado autêntico. Com freqüência, a necessidade suprema em nossa vida é a mais ignorada: confiança inabalável no amor de Deus, qualquer que seja a situação. Penso que foi esse o ensinamento de Paulo ao escrever em Filipenses 4.13: “Tudo posso naquele que me fortalece”.

Mas, como podemos saber se estamos confiando mesmo? A maioria das pessoas afirma que confia em Deus.
A característica dominante de uma vida espiritual autêntica é a gratidão que brota da confiança – não apenas por todos os dons que recebo de Deus, mas gratidão também por todo o sofrimento. Por ser uma experiência purificadora, o sofrimento é, freqüentemente, o caminho mais curto para a intimidade com Deus.
Acrescentaria, também, que a confiança bíblica cresce a partir do amor. Minha confiança em Deus deriva da experiência do amor dele por mim, dia e noite, haja tempestade ou calmaria, doença ou saúde, esteja eu em boa ou má situação. Ele se aproxima de mim onde eu vivo e me ama como sou.
Em João 17.26, Jesus disse: “Eu os fiz conhecer o teu nome, e continuarei a fazê-lo, a fim de que o amor que tens por mim esteja neles, e eu neles esteja”. Abba tem por nós exatamente o mesmo amor que tem por Jesus, quando habita em nosso coração. O problema é que a maioria das pessoas não sabe disso.


Quer dizer que parte do problema é falta de atenção?
Acredito que a verdadeira diferença na igreja americana não é entre conservadores e liberais, fundamentalistas e carismáticos, nem republicanos e democratas. A diferença está entre os que percebem e os que não percebem.
Quando uma pessoa percebe esse amor, o mesmo que o Pai tem por Jesus, ela se enche de gratidão espontânea. O clamor de gratidão se torna a característica dominante de sua vida interior, e o subproduto da gratidão é alegria. Não ficamos alegres e depois gratos, é a gratidão que nos enche de alegria.


Mas existe o sofrimento, também. Em seu livro, em meio à gratidão e à contemplação de Deus, você fala de forma bem pessoal sobre como, se quisermos realmente aprender a confiar em Deus, não é possível evitar o sofrimento pessoal.
Quando eu vivia em Nova Orleans, sem freqüentar nenhum centro de reabilitação para alcoólatras e dependentes de drogas, eu me agarrava a um gole de vodka e o que menos queria era o tratamento de 28 dias que poderia salvar minha vida.
Continuei a beber – uma criança bêbada clamando: “Jesus, onde você está?”. Como vivenciamos a confiança no meio de dor, sofrimento, mágoa e puro desespero? Quer dizer, será possível suportar e por fim vencer o cenário sombrio e melancólico do mal e da destruição e voltar a sentir que o amor de Deus é incondicional? Essa é a pergunta que faço aos cristãos. Vocês confiam no amor de Deus? Todos respondem que sim, que sabem disso há muito tempo. Aí, observe como vivem. Há tanto medo, tanta ansiedade, tanta raiva de si mesmos. A melhor definição de fé que já ouvi foi feita por Paul Tillich: “Fé é a coragem de aceitar a aceitação”.
O que significa isso? Fé é um código para aceitar que Jesus conhece toda a história de minha vida, cada segredo, cada momento de pecado, vergonha, desonestidade e degradação em meu passado. Agora mesmo Ele conhece minha fé superficial, minha vida de oração frágil, meu discipulado inconstante, aproxima-se de mim e fala: “Desafio você a confiar. Confiar que eu o amo exatamente como você é e não como deveria ser, porque você nunca será como deveria ser”.


Por que temos medo de Deus não nos amar como somos?
Minha percepção é que pensamos que, se deixarmos Deus livre em nossa vida, ele irá pedir demais de nós. Será que ele vai me mandar ficar 10 anos em Calcutá, com as missionárias de Madre Teresa? Será que vai me fazer ter câncer? Ele pode me mandar deixar minha esposa e ir viver sozinho numa caverna, pensando só nele. Esses temores malucos não têm nada a ver com o Deus verdadeiro, que se delicia com seu povo.
Para mim, é mais importante amar do que ser amado. Quando a pessoa ainda não teve a experiência de ser amada por Deus, do jeito que é e não como deveria ser, então amar os outros se torna um dever, uma responsabilidade, uma tarefa. Mas, quando aceito ser amado como sou, com o amor de Deus derramado em meu coração pelo Espírito Santo, então posso alcançar os outros com menos esforço.


E a confiança que nasce desse amor, como você falou, é implacável.
Isso soa engraçado: confiança implacável. O dicionário define implacável como “sem piedade”. No contexto que estou usando, é sem autopiedade, que é a primeira reação normal inevitável. Creio ser perda de tempo tentar acabar com ela. Entretanto, chega o momento em que ela ameaça se tornar maligna. Pode nos atrair para a autodestruição e comportamentos como afastamento, isolamento, bebida, drogas e assim por diante. E depois apenas imploramos a graça de Deus para colocar um limite temporal em nossa autopiedade.
O poeta disse que a última ilusão de que devemos abrir mão é o desejo de nos sentirmos amados. Há um monge que viveu durante 30 anos na abadia Genesee. Um visitante lhe perguntou se ele se sentia mais próximo de Deus do que há 30 anos. A resposta gloriosa do monge foi: “Não, mas isso não tem mais importância”. Ele estava tão livre da necessidade de se sentir amado que podia aceitar, indiscriminadamente, consolo ou desolação, presença ou ausência de Deus, como sendo a mesma coisa. Graças a Deus que, com a instabilidade de meus sentimentos frágeis, a presença dele em mim não depende do que eu sinto. Se dependesse eu estaria com sérios problemas.


Fonte: Cristianismo Hoje

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